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terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Dez anos de PT no poder: as evidências do atraso


Na semana passada o PT promoveu um evento para comemorar os 10 anos à frente do poder máximo no Brasil. Caso se tratasse de um partido que tivesse um projeto político de desenvolvimento, não há dúvida de que após uma década de governança federal, haveria de fato motivos para festejar. Todavia, bem ao contrário disso, aquilo que o PT sempre pretendeu antes e depois das eleições de 2002 foi implantar um claríssimo projeto de poder alicerçado em bases gramscianas e ditatoriais; concretizou seu objetivo às custas da cooptação das massas e da destruição das esferas político-administrativas, características fundamentais de toda e qualquer ditadura. A situação que hoje vivemos no Brasil evidencia a completa falência das instituições democráticas e a crescente depauparação da economia nacional. Se juntamente com o partido as massas mantidas propositadamente na ignorância comemoram, o cidadão cônscio só tem a deplorar.
Durante oito anos, por meio de seus discursos metafóricos, hiperbólicos e messiânicos, Lula teve margem de manobra mais do que suficiente para transformar o imaginário das massas, lhes transmitindo a ideia de que ele e o PT teriam sido os responsáveis por salvar o país das injustiças e da dominação impostas por todos aqueles que ocuparam o governo antes do Messias, representantes da "elite burguesa, capitalista e preconceituosa" que nunca quiseram ver o povo liberto das amarras. É um discurso falso, simplório e maniqueísta, mas que conquista facilmente a mentalidade de populações carentes e sem qualquer conhecimento histórico-político, um prato cheio para que o PT pudesse impor sua ditadura com tranquilidade. Aos "intelectuais" orgânicos da esquerda, sobretudo no Sul e Sudeste, restou o papel de disseminar tais ideias no âmbito da educação e da cultura, dessa forma angariando também o apoio de parcelas significativas de um eleitorado urbano inserido entre a juventude e a meia idade, proveniente das classes C e D, esvaziado de moralidade e descrente na democracia, cujo universo se limita às novelas globais, ao futebol, ao carnaval e às baladas embaladas por drogas e anomalias musicais. Some-se a essa mistureba o assistencialismo populista e obtém-se a receita de sucesso do PT para a chegada ao poder e sua manutenção. A atual presidente, definitivamente dona de um perfil político anódino, alguém que foi moldada do barro sem que tivesse absolutamente nada a construir, a não ser ocupar de modo cem por cento figurativo o cargo de liderança máxima do país, somente dá continuidade ao que Lula e outros quadros poderosos do PT haviam conseguido até 2010. Por isso mesmo ela deverá ser candidata à reeleição em 2014, funcionando como escudo e marionete para aqueles que realmente atuam nos bastidores da política.
Nada nos últimos dez anos foi capaz de combater o projeto ditatorial do PT, a começar por uma oposição extremamente fragilizada, incapaz tanto de expor a perfídia embutida no petismo, como de oferecer alternativas a ele. Ao invés de se colocar em posição radicalmente contrária ao ideário do partido dominante, a oposição apenas procura defender uma espécie de petismo não-ditatorial, deixando de entender que é exatamente este aspecto que dá forma e conteúdo ao atual governo, o elemento próprio que tornou possível ao PT ser o que é hoje.
O atraso que toma conta do Brasil é uma evidência gritante, mas uma vez realizada a cooptação, retirar as massas da catarse é algo de dificuldade elevadíssima. O mensalão, os casos de dinheiro na cueca, os escândalos de corrupção envolvendo os ministérios do Esporte e dos Transportes, o episódio Rosemary Noronha, as trapalhadas e engenharias numéricas distorcidas de Guido Mantega, ministro do "pibezinho" e da inflação cada vez mais crescente, a precariedade logística acompanhada do colapso aeroportuário, o apagão do setor energético, a carência de investimentos em educação de qualidade e em tecnologia e, parem as máquinas (!), até mesmo a Petrobrás, deusa todo poderosa da estatolatria tupiniquim que agora se apresenta mergulhada em uma crise gravíssima, são aspectos insuficientes para fazer com que os defensores do PT abram os olhos diante de tantos erros grotescos cometidos pelo partido. O lodaçal em que o PT meteu o Brasil revela, além da natureza ditatorial e corrupta da sigla, outros absurdos relacionados ao modus operandi petista, como o aparelhamento da máquina pública, o fisiologismo, a ideologização como substituta da eficiência e do conhecimento, a centralização, o estatismo, a anomia política do cidadão e o manjado assistencialismo, prática que faz as populações carentes dependerem cada vez mais das esmolas do governo sem jamais tirá-las da pobreza, efeito que iria contra a tática da cooptação (se não fosse assim, depois de dez anos no poder, o PT não precisaria ampliar esses "benefícios", ao contrário, reduziria-os). E não adianta nada os porta-vozes do petismo bradarem que o partido levou o consumo até as classes C e D, pois crediário de longo prazo para comprar aparelhos de TV não gera desenvolvimento humano, este sim parâmetro para se avaliar corretamente a prosperidade de uma nação, mas que não faz parte do arcabouço político do PT.
Os últimos dez anos do partido de Lula e Dilma à frente do governo federal superam negativamente e em larga escala o pior dos governos anteriores, constatação que, se já era evidente desde que o mensalão estourou como o maior e mais sistemático escândalo de corrupção e de destruição institucional da história brasileira, ganha cada vez mais força diante do atraso econômico e estrutural, claramente evidenciado neste momento. Nem mesmo a centelha de idoneidade que resistiu aos tentáculos do PT e permitiu à maioria dos ministros do STF a justíssima condenação dos envolvidos no mensalão, teve força para abrir os olhos da população. O que falta ainda para o Brasil acordar?! A falência completa da nação está às portas, o tempo se esvai a galope.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Trabant: um brinde ao consumo e à riqueza sob o comunismo


Certa vez escutei de alguém palavras que diziam o seguinte: "as pessoas confundem comunismo com franciscanismo, o que é um erro, pois o comunismo tem o objetivo de espalhar a riqueza". Aquilo me estarreceu, já que, de fato, ambos nunca deveriam ser confundidos, mas se a primeira parte da sentença soava correta, a parte final transmitia uma ideia absurda, inteiramente desconectada da realidade e da observação histórica. Ainda que o objetivo final do comunismo possa ser o bem estar geral, ele sempre se mostrou terrivelmente falho neste intento. Também com relação ao franciscanismo, igualmente havia um equívoco gritante, haja vista que se estava impondo uma visão materialista sobre uma filosofia cuja linha mestra vai em sentido oposto.
O voto de pobreza de Francisco de Assis e de seus seguidores jamais teve qualquer conotação de fundo material. Se os franciscanos renunciaram ao conforto que lhes era possível, em uma Idade Média em que as privações eram comuns a um número de pessoas muito amplo, renegar as posses materiais nem poderia alcançar um apelo digno de louvores e respeito por parte da sociedade. Mais importante, no entanto, é ressaltar que o franciscanismo foi adotado por um círculo relativamente restrito de adeptos, aspecto do qual advêm três características que o diferenciam positiva e radicalmente do comunismo: 1) para que alguém se tornasse um seguidor dos ensinamentos de Francisco, bastava a livre e espontânea vontade, ou seja, o movimento não carregava qualquer intenção cooptativa; 2) o movimento surgiu como uma alternativa ao cristianismo que se fazia dominante à época, pregando um retorno aos primórdios da fé cristã, bem anteriores à ortodoxia da Igreja - se pouquíssimo tempo depois de sua morte Francisco foi canonizado e o franciscanismo incorporado à ortodoxia, isso se fez de maneira totalmente exógena ao movimento; 3) o voto de pobreza dos franciscanos era condição sine qua non para que alguém se tornasse efetivamente um franciscano, portanto, a renúncia às posses assumia caráter puramente ascético, o que diferenciava os franciscanos do restante da sociedade - note-se o abismo em relação ao ideal uniformizante do comunismo -, além do que era compartilhada e mantida por todos os seguidores do movimento, inclusive pelos líderes, evidentemente. No movimento franciscano não havia lugar para algo como "todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros". Quando uma situação que pudesse levar a isso começou a se insinuar, imediatamente Francisco se tornou reticente e recolheu-se ao claustro para vislumbrar seu próprio fim.
O comunismo romântico, tributário das ideias do jovem Marx, nunca teve como objetivo espalhar a riqueza, tampouco gerá-la, o que é necessário para que seja distribuída. Essa vertente do pensamento comunista conheceu várias tentativas de implantação em diferentes lugares ao longo dos últimos cem anos, aproximadamente, bem como foi descartada tantas outras vezes. Nesse caso, o horizonte final do comunismo é um idílio quase espartano, permeado de altruísmo e autossacrifício, simplicidade e criatividade. Aqui o comunismo poderia estar próximo do franciscanismo, porém, como existe uma incoerência intransponível entre o alto grau de espontaneidade exigido por esse tipo de idílio e a centralização disciplinadora inerente à imposição comunista, formas pragmáticas, autoritárias e totalitárias tomaram o lugar da vertente romântica e produziram os maiores genocídios do século XX. Stalin e Mao Tse-tung deram forma ao chamado socialismo real não porque fossem negadores do marxismo, mas porque se depararam com os erros grotescos do próprio Marx, ele que na maturidade, diante das lacunas de sua filosofia, já havia sido obrigado a atirar para longe muito daquilo que defendera anteriormente.
Após os repetidos fracassos dos sistemas comunistas, já em uma época mais recente de distensão e de abandono da retórica de cunho romântico e utópico, Leonid Brezhnev assumiu o governo da URSS em meados da década de 1960 e passou a assumir um discurso que de alguma forma pudesse agradar à população exausta das promessas jamais cumpridas do comunismo. Era hora de associar o regime comunista com a capacidade de proporcionar conforto e satisfação à sociedade. Observe-se que somente após quase meio século de experiência comunista o governo da URSS se prestava a olhar com mais atenção para um desejo que, exceto por parte dos poucos que se tornam ascetas, é algo comum à maioria dos indivíduos. Foi durante este período que Brezhnev começou, juntamente com alguns países-satélites da URSS no Leste Europeu, a destinar mais recursos às indústrias de bens de consumo. A situação de penúria poderia ter melhorado se os cinquenta anos desde a Revolução Russa não tivessem pulverizado o mercado: a baixíssima produtividade, a impossibilidade do cálculo, da precificação e da alocação de recursos em economias fortemente acostumadas com o planejamento central não permitiram a produção de bens de consumo de qualidade e capazes de atender à demanda, problema que até hoje deixa resquícios em países que estiveram sob regimes comunistas, inclusive na atual Rússia.
A partir do fim dos anos 1960 e início dos 1970, a URSS de Brezhnev montou uma espécie de convênio com seu satélite na Alemanha Oriental para produzir o Trabant, veículo feito com carroceria de plástico, altamente agressiva à natureza. Os primeiros Trabants foram encomendados na URSS em 1976. Treze anos depois, em 1989, já nos estertores do comunismo à época de Mikhail Gorbachev, eles começavam a chegar aos encomendantes. Não, não ria! Apenas nunca se dê ao desplante de defender o comunismo e de acreditar ingenuamente que esse sistema se faz apto a proporcionar o bem estar das pessoas ou seja capaz de espalhar a riqueza. No máximo, o comunismo espalhou a pobreza por imposição e a ausência de liberdade. Francisco de Assis e seus seguidores fizeram voto de pobreza espontâneo, adotaram o ascetismo moral e se dispuseram a ajudar os necessitados. Se estiver farto do capitalismo de massas, o franciscanismo é uma opção bem melhor!

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Por que não se calam?!


No fim da semana passada a nova diretoria do Palmeiras anunciou que o centroavante Barcos, principal jogador da equipe palestrina, estava de saída para o Grêmio envolvido em uma troca com cinco jogadores do time gaúcho. Do modo como a transação se apresentou inicialmente, seria vantajosa para o alviverde, que necessita preencher as várias lacunas da equipe, assim como para os gremistas, que estão montando um time bastante forte. Acontece que o atacante Marcelo Moreno, dos cinco atletas que fariam parte da troca, o mais cobiçado deles, não deve vir no pacote, pelo menos não nesse momento. Assim sendo, desaparece quase totalmente aquela vantagem inicial que se vislumbrava para os lados do Palestra Itália. De quebra, o pai de Moreno deu declarações extremamente humilhantes sobre o Palmeiras que correram os quatro cantos do país.
O fato tem sido exaustivamente explorado pela imprensa esportiva que, como não poderia deixar de ser em se tratando de Palmeiras, promove o mais alto sensacionalismo com o objetivo de massacrar o alviverde. Até mesmo o sr. Juca Kfouri, que vive a posar de bom moço e atua na ESPN Brasil, emissora outrora digna de elogios, mas de uns tempos para cá descambando para a vala comum do jornalismo esportivo, explorou a transação de modo a tripudiar do Palmeiras. Ficou mais do que evidente o erro da diretoria palmeirense ao anunciar o negócio sem que os jogadores do Grêmio tivessem sido previamente informados a respeito da situação, mas há uma série de outros aspectos a serem analisados, todos eles deliberadamente negligenciados por jornalistas que nutrem uma raiva doentia pelo Palmeiras. E pensar que são os zumbis incolores, favorecidos pelos nefastos arranjos da politicagem nacional, aqueles que se apropriaram dessa história de "anti": jamais o "contra tudo e contra todos" foi tão deslavadamente falso quanto no caso do time do establishment e tão verdadeiro para o alviverde paulistano.
Barcos fez parte da campanha no Brasileiro de 2012, portanto, é também responsável pelo rebaixamento. Se o argentino anotou 28 gols na temporada passada, também é verdade que ficou de fora das duas partidas finais da Copa do Brasil e protagonizou atuações bem apagadas e abaixo da média, como por exemplo, contra o Guarani nas quartas de final do Paulista. Barcos é normalmente um jogador nota 6,5 ou 7, chegando a 8,5 ou 9 em alguns momentos, mas também 3,5 ou 4 em outros, quando mata a bola de canela ou parece correr usando calça jeans e carregando um piano nas costas. Cheguei a observar certos torcedores tomados pelo desespero, presas fáceis para o sensacionalismo antipalmeirense, declarando que o argentino foi o melhor centroavante dos últimos dez ou até quinze anos, um insulto grave ao hiperdecisivo Oséias, sem contar que o Vagner Love de 2003/04 e Alex Mineiro também se mostraram superiores a ele.
Antes mesmo do Palmeiras ser rebaixado no ano passado, Barcos já indicava que não queria jogar a série B, postura por si só reprovável, pois o descenso ainda não havia se consumado. Após a queda, começou a fazer leilão e renovou contrato somente porque lhe foi concedido aumento pela gestão Alberto Tirone, um absurdo para um jogador que participou do rebaixamento. Não satisfeito, continuou as negociatas para forçar sua saída e fez corpo mole, como ficou claro nas partidas contra Penapolense, XV de Piracicaba e Atlético Sorocaba. Acredito que a pior coisa para um time que precisa recuperar a autoestima é manter em seu elenco atletas insatisfeitos e, se iludido por convocações eventuais na seleção argentina, Barcos acredita que poderá estar na Copa 2014 no lugar de jogadores muitíssimo mais qualificados do que ele, que vá tentar a sorte nos pampas. No Palmeiras, independente do momento, para vestir o manto alviverde o sujeito deve ter culhões, deve ter algo mais, como diria o inigualável Evair, esse sim ídolo eterno, craque que soube esperar a hora certa para mostrar seu inestimável valor, calando a boca de todos que se atreveram a colocá-lo em dúvida. Vale lembrar que Evair chegou ao Palmeiras em 1991, quando o alviverde estava na fila. Evair nunca precisou de negociata, nunca fez biquinho, nem tinha rabo de cavalo para ficar alisando. Mais de dois anos após a sua chegada e depois de ser afastado em 1992 pelo técnico Nelsinho Baptista sob pretextos sórdidos, preconceituosos e mentirosos, destruiu o time incolor dirigido pelo mesmo Nelsinho na final do Paulista de 1993 e tantas outras glórias se seguiram. E então eu pergunto, quem é Barcos?
Barcos não é ninguém, o que torna ainda mais ridículas e oportunistas as análises da imprensa sensacionalista e dos torcedores pilhados dando conta de que a atual diretoria palmeirense "vendeu" a Libertadores. Ora, quem descartou a Libertadores muito antes dela começar foi a gestão anterior, trapalhona, leniente e sem o menor interesse ou tino para futebol, além do maldito estatuto fossilizado, que prevê eleições para o fim de janeiro, quando não é mais possível montar um elenco. Que chances o Palmeiras teria no torneio sulamericano com Barcos no ataque? As mesmas que tem sem o argentino, ou seja, pouquíssimas, bastando ter boa fé para saber que nada mudou, com ou sem Barcos.
Paulo Nobre e José Carlos Brunoro cometeram um erro, se precipitaram e levaram um chapéu da raposa Fábio Koff. Ponto. Se existe algo mais por trás da história, basta que as más línguas o provem. Quanto às declarações do pai de Moreno, não é preciso se preocupar, já que assim como Barcos, ele não é ninguém: desde quando um palavrório leviano vai atingir o Palmeiras?! Vivi os anos 1980 e sei muito bem do que estou escrevendo... Moreno é mais jogador do que Barcos, se não vier, que o Palmeiras receba a compensação financeira. Mais cedo ou mais tarde, um camisa 9 à altura envergará o manto esmeraldino. Ainda acredito que a atual gestão, aos poucos, irá reconstruir o Palmeiras. O tempo dirá.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Entusiasmo irrefletido: reflexões de Hume e Ginzburg contra o pensamento politicamente correto


Quando eu era apenas um estudante do primeiro semestre da graduação em História, a professora Marcia D'Alessio, uma daquelas que sempre levou consigo a raríssima qualidade de jamais misturar conhecimento com paixões ideológicas, disse em um sábado de manhã, dia em que ela ministrava suas excelentes aulas de Teoria da História I: "[Carlo] Ginzburg é um mestre, um historiador muito acima da média". Eu não sabia nada sobre ele e só estava engatinhando no entendimento dos meandros teóricos da História, mas já podia ter a certeza de que, por tudo aquilo de profundo e sublime que a professora Marcia transmitia aos alunos dispostos a se aventurarem pela riqueza do conhecimento histórico, era uma delclaração a ser bem guardada e desvendada.
O primeiro livro de Ginzburg que li foi O queijo e os vermes, em relação ao qual logo me ficou evidente a criatividade com que o autor abordou o tema da Inquisição e dos paradigmas culturais na Idade Moderna. Depois, fui buscar uma obra teórica de Ginzburg no objetivo de tentar refletir como ele aplicava seus pressupostos teóricos na pesquisa histórica. A leitura óbvia para um iniciante em estudos ginzburgianos seria Mitos, emblemas, sinais, mas encontrei primeiro Olhos de madeira, livro extremamente denso e desafiador para a inexperiência de um principiante. Li a obra umas três vezes, com certo intervalo de tempo entre as leituras, para começar a captar seu cerne. A percepção proporcionada por ela me marcou decisivamente.
A distância espaço-temporal é um dado da subjetividade humana, porém, a influência que faz incidir sobre os homens, a despeito da variedade imensa de efeitos gerados, é uma questão objetiva, presente no dia a dia das pessoas, ainda que de modo muitas vezes inconsciente. Em seu Tratado da natureza humana, David Hume é lapidar no exemplo que fornece: "Na vida cotidiana vemos que os homens se preocupam principalmente com os objetos que não estão muito distantes no espaço ou no tempo, desfrutando o presente e confiando o que é distante ao acesso e à sorte. Fale com um homem a respeito da condição em que ele estará daqui a trinta anos, e ele não lhe dará a menor atenção; fale sobre o que acontecerá com ele amanhã, e será todo ouvidos. A quebra de um espelho na nossa casa nos preocupa mais do que o incêndio de uma casa distante uma centena de léguas". Parece elementar, mas é exatamente o tipo de coisa que o politicamente correto impede de enxergar. Como todo grande filósofo, Hume pensava sempre naquilo cuja validade servisse para ele próprio, regra essencial para se estabelecer a moralidade e, como empirista, detestava o entusiasmo irrefletido.
É mais do que uma evidência notar que pessoas em condições normais lamentam e muito acontecimentos trágicos que vitimam grande número de pessoas, tais como se sucederam há poucos dias em Santa Maria (RS). Investigação e punição de eventuais responsáveis é o que se deve desejar, além de fiscalização mais acurada para prevenir outros eventos semelhantes. Encarar dessa forma não demanda cobertura sensacionalista por parte da imprensa, nem as lamúrias de falso desespero que pipocaram na redes sociais, vindas de pessoas espacialmente distantes de Santa Maria e sem nenhuma ligação com as vítimas. O exagero e a artificialidade observados nessas manifestações são aspectos do manjado politicamente correto, o que Hume chamaria de entusiasmo irrefletido, ou euforia: sem se darem conta que uma tragédia é lamentável por si só, muitos embarcam no espírito geral de consternação e parecem acreditar que palavras sem real significado e que no mais das vezes não são lidas nem ouvidas por gente próxima das vítimas, podem funcionar como uma espécie de consolo capaz de vencer a distância e o tempo. Em relação à distância temporal, é ainda mais fácil perceber sua atuação, bastando indagar quem, dentre aqueles que não possuem ligação com as vítimas, ainda estão sob forte consternação. E daqui um ano, dois...?
Hume e Ginzburg foram argutos ao estudarem o caráter inexorável da distância espaço-temporal e suas implicações morais sobre a experiência humana. Há, por outro lado, quem possa entender tal reflexão como sinônimo de indiferença e insensibilidade, o que igualmente denota a confusão fruto do politicamente correto. A esses proponho que se coloquem a pensar no carnaval que está chegando: irão cair na folia e deixar que o clima de intenso entusiasmo irrefletido os possua por completo? Duas semanas após a tragédia de Santa Maria terão esquecido totalmente dela (se é que se lembraram do acontecimento alguma vez na acepção do que é "lembrar")? Vale ressaltar que o Carnaval, juntamente com o Ano Novo, outra ocasião de euforia, é o momento de maior violência do ano - em todos os sentidos. Quais manifestações permeadas de politicamente correto estas duas épocas ensejam? Acabem-se...