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terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Memórias antipetistas


Quando eu era criança, escutava em casa conversas sobre o esquerdismo em geral e o PT especificamente que, àquela altura, já representava o leitmotiv da esquerda no Brasil. É claro que, sendo bastante novo, eu ainda não podia, nem de longe, estabelecer um quadro explicativo definitivo a respeito da questão. De todo modo, aquilo jamais deixou de fazer parte dos meus pensamentos, o que foi de utilidade cabal para meu futuro. Nos anos subsequentes, o mundo assistiu ao colapso da URSS e, antecipando as frias - e a-históricas - previsões de Francis Fukuyama, comentadores diversos davam como certo que não só um regime político e econômico localizado no tempo e no espaço havia ruído, mas também a ideia central que lhe servia como pedra de toque. Aquilo soava como uma constatação perigosamente simples: governos que se fiavam em premissas falhas, mais cedo ou mais tarde encontrariam seu fim, o que é correto, mas o que garantiria que as diretrizes teóricas terminariam junto?
Na escola, eu sempre me deparava com análises que pintavam quadro contrário ao que havia sido proclamado quase como um elemento do senso comum. Ao invés de consolidarem o sepultamento do comunismo, professores e livros didáticos promoviam descrições altamente enaltecedoras do pensamento de Marx e da doutrina por ele teorizada, ao passo que todas as mazelas do mundo eram colocadas na conta do capitalismo. Havia nisso, no mínimo, uma grande contradição.
Constantemente, eu me punha a comparar o que ouvia - e continuava ouvindo - desde criança com o mote que caracterizava o ensino escolar. Nesse momento, eu já era adolescente e possuía instrumental um pouco mais desenvolvido mas, mesmo assim, criava-se uma confusão em minha mente. Alguém havia errado, ou foram as pessoas que me transmitiram a educação no sentido moral do termo e cuja formação se deu em tempos nos quais o ensino, amplamente entendido, era muito melhor no Brasil, ou o equívoco estava bem ali, diante de mim, materializado em meus professores e nos livros didáticos que utilizávamos. Períodos de inquietação nos quais indaguei a mim mesmo se havia possibilidade de haver acerto em uma teoria que prega a violência e a eliminação de setores da sociedade, a completa submissão do indivíduo ao Estado e à marcha de uma história pré-estabelecida, além de inúmeras contradições internas, foram incontáveis. Moral e filosoficamente, porém, cada vez mais eu me aproximava da certeza de que não existia a mínima chance daquilo estar correto.
No Brasil da década de 1990, a social-democracia triunfou e logrou grande êxito ao colocar a economia do país no rumo certo, o que garantiu a FHC duas vitórias seguidas na corrida presidencial, ainda assim, no âmbito da cultura, a propaganda comunista se tornou ainda mais intensa na virada para o século XXI (já escrevi a respeito aqui: http://aristaire.blogspot.co.id/2012/10/pt-e-psdb-iguais-no-discurso-diferentes.html). No curso pré-vestibular e na faculdade de História, me deparei não só com o enaltecimento das ideias de Marx e com a demonização do capitalismo, mas com discursos absolutamente panfletários e enfurecidos a favor do esquerdismo. Em tais ambientes, como em uma pequena amostra da sociedade comunista, - o que ficou ainda mais nítido para mim - o patrulhamento ideológico e a completa eliminação do dissenso dão a tônica. Tanto o desconhecimento, como o corte seletivo de tudo aquilo que reduz Marx a pó são comuns nessas cátedras do pensamento único, o que obrigatoriamente leva os discordantes a terem que percorrer um trajeto completamente diferente (e cem por cento confidencial) daquele que é ditado. Internamente, eu continuava confrontando o esquerdismo com o que havia aprendido desde tempos àquela altura já remotos, somando a isso novos conhecimentos adquiridos em buscas autônomas por autores e ideias que se opunham às de Marx. Foi bastante interessante ter notado que os próprios esquerdistas, embora suas práticas os desmentissem, não usavam com recorrência o termo "comunismo", a não ser de maneira romantizada, tampouco admitiam que os retumbantes fracassos do comunismo fossem decorrentes das falhas desse paradigma. Também curioso era observar que aqueles que não se julgavam alinhados com Marx se revelavam incapazes de propor uma crítica contundente ao esquerdismo, deficiência visível sempre que, de acordo com esses, a denúncia aberta do comunismo era uma "paranoia", "coisa de quem ainda não sabia que o Muro de Berlim havia caído há muito". Sem sabê-lo, os não-marxistas davam combustível à esquerda, que havia ressuscitado Gramsci e descoberto que a melhor e mais eficaz tática para a tomada completa do poder se faz nos recônditos do sistema, no sequestro paulatino das mentes, por meio da destruição da cultura, do sistema de ensino e da ocupação de espaço nas diversas esferas da sociedade. Ficou óbvio para mim que a estratégia comunista, uma vez desmascarada sua perfídia, batia perfeitamente com as descrições que tive na infância e com os pensamentos dos autores que, em parte por sorte, em parte por impulso próprio, pude tomar contato. O próprio ambiente o qual eu frequentava, contribuía ainda mais para concluir que não bastava a queda de um regime no tempo-espaço, fato comum na história, mas que a verdadeira força que move os homens, para o mal, inclusive, está no imaginário, no campo das ideias e mentalidades. O comunismo não só não estava morto, como aumentava sua força a cada dia.
Na campanha presidencial de 2002 o PT adaptou o discurso às circunstâncias e à conjuntura a fim de conquistar o apoio de parcelas da sociedade que até então eram indiferentes às suas bandeiras, mas a essência não havia mudado, pelo contrário, era a mesma de qualquer partido de esquerda. Para aqueles que haviam se debruçado sobre a história das ideias políticas, os mesmos que em mais de duas décadas de existência do PT - àquela altura - sempre se dispuseram à árdua e importante tarefa de desnudar as verdadeiras intenções de tal grupamento político, era evidente que a chegada de Lula à presidência da República acarretaria consequências gravíssimas para o futuro da nação. Iludida pela maciça propaganda cultural de esquerda, inebriada pela retórica da "justiça social" e do anticapitalismo, grande parte da população brasileira, a despeito dos avisos, deu a vitória para o líder sindical. Leal ao falso clima de "daqui para a frente o país encontrará o caminho da justiça e da prosperidade", espécie de redenção milagrosa que por isso mesmo já faz denotar seu caráter frágil e vazio, boa parte da imprensa e muitos analistas tolos saudaram a eleição da nefasta figura de Lula, como se seu passado parasítico, sua retórica enfadonha e suas ideias horrorosas não existissem. O que valia é que ele era um "homem do povo", "alguém que, por ter supostamente vivido certas agruras, conhecia os males a serem curados e os remédios certos para fazer alcançar o paraíso"... Para os que não foram ouvidos, os que realmente sempre estiveram certos, a questão ia muito além do tempo curto dos atos políticos cotidianos, pois o alicerce do monstro que havia sido imprudentemente libertado repousava na própria natureza da ideia, tocava em temas morais, filosóficos e respondia pela história e pelas tentativas de aplicação de uma teoria que, invariavelmente, conduziu à tragédia. O PT não se degenerou, o PT é uma aberração política e filosófica desde sua essência, desde seu surgimento.
A situação que estamos vivendo no Brasil de hoje não me surpreende, não me causa espanto, pelo contrário, é o resultado inexorável do comunismo, - sistema que não produz outra coisa senão a desigualdade política, facilmente observável em função do enfraquecimento da sociedade civil diante dos poderes corruptos e cada vez mais autoritários do Estado e do aparelhamento das instituições - a miséria econômica, escancarada nos mais diversos indicadores, e a falência da moral e da ética, comprovada pelo domínio da incultura e pela ausência de valores que perpassa vastos segmentos populacionais, independentemente de fatores como classe ou origem étnica.
O Mensalão foi o sinal que deveria ter sido suficiente para que a sociedade brasileira acordasse diante da besta que lhe tomava de assalto, todavia, as armas da propaganda, do assistencialismo e a própria cultura sequestrada pela estratégia gramsciana se mostraram mais fortes do que qualquer evidência, por mais explícita que fosse. Como tão bem mostrou Czeslaw Milosz, mentes cativas não são facilmente recuperadas. Foram concedidos mais beneplácitos ao petismo e o que tivemos depois disso, os tantos outros escândalos e crimes cometidos contra o cidadão e contra as instituições, fazem parte do mesmo objetivo, isto é, a perpetuação no poder e sua concentração cada vez mais intensa nas mãos da organização criminosa. Ao invés de cortar o mal pela raiz sem lhe dar chance de sobrevivência, preferiu-se o método do sangramento lento, escolha de quem jamais conheceu a essência do esquerdismo ou de quem considerava positivo mantê-lo vivo...
Se, como discuti aqui (http://aristaire.blogspot.in/2015/10/um-partido-em-migalhas.html), o caos ao qual fomos conduzidos pelo PT ora se mostra de modo tão escancarado que já não é possível negá-lo sem cair no extremo do ridículo ou sem que rapidamente se revelem interesses escusos por parte de quem nega, fez com que crescesse o antagonismo, com contingentes populacionais que já não mais veem paranoia na acusação de comunismo contra o partido da presidência, a ação demandada na luta a que somos chamados ainda se mostra muitíssimo abaixo do necessário. O impeachment, momentaneamente enfraquecido por um STF aparelhado e caído de joelhos frente ao poder emanado do arcabouço de poder petista, caso se confirme, poderá ter importante significado simbólico, fazendo com que mais gente abra os olhos, tanto para a situação do país, como para a compreensão da verdadeira natureza maléfica do petismo e do esquerdismo, mas não será suficiente para reverter o quadro de apodrecimento institucional, nem para sanar a máquina pública dos vermes que dela se apoderaram de maneira estrutural. Para que o Brasil passe a percorrer a trilha do capitalismo liberal e do governo republicano, será necessário muito mais...

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Giotto di Bondone e o demônio: um retorno ao paradigma indiciário


1. No ano de 1986, o historiador Carlo Ginzburg provocou frisson com seu ensaio "Sinais: Raízes de um paradigma indiciário". Desde então, a temática levantada pelo texto e pela própria obra do autor, na qual ele sempre usa a micro história como suporte, tem sido debatida em suas implicações teóricas, que são riquíssimas e de enorme abrangência. Por outro lado, no entanto, pesquisas historiográficas baseadas em tal arcabouço teórico parecem não ter tido, ao longo desse tempo todo, tanta recorrência, proporcional ao alarido trazido pela reflexão quando a mesma veio à tona, apesar de nomes importantes como Robert Darnton, Natalie Zemon Davies ou Giovanni Levi, que se não são discípulos de Ginzburg, no mínimo, abriram com ele vários caminhos de interlocução. De qualquer maneira, em linhas gerais, o que se observa ainda hoje é o predomínio de explicações tributárias das causas gerais, dos "processos históricos", entendendo-se essa expressão quando associada com quadros esquemáticos estruturais, sem conceder lugar para o que não se enquadra nos moldes preestabelecidos que invariavelmente acompanham tal linha de pensamento. Ainda que a micro história, em última análise, tenha sua busca voltada para a tipicidade, o "X" da questão é: onde podemos encontrá-la?

2. O que tenho em mente é levantar uma bola. Quem estará disposto a chutá-la com um mínimo de direção? Tomemos um dos afrescos de Giotto pintados na Basílica Superior de Assis (Itália), aquele que narra a vigésima cena da vida de São Francisco (imagem acima). É sabido que em 2011, Chiara Frugoni, historiadora e italiana como Ginzburg, descobriu um detalhe, um pormenor revelador que ficara oculto por oitos século na pintura de Giotto. Trata-se da face em perfil de um demônio, cujas feições se caracterizam pelo sarcasmo e pelo sorriso levemente irônico (imagem abaixo). Feita a descoberta, quem se dispõe a observar o afresco com atenção durante alguns segundos, nota que o detalhe foi incluído por Giotto nas nuvens bem ao centro da obra, estando o demônio do lado direito delas.


Por que o artista teria pintado esse pormenor de modo a deixá-lo implícito? Por que o teria feito aproveitando-se das nuvens? Não é segredo o fato de que, como pré-renascentista, Giotto lançasse mão de códigos figurativos em suas pinturas, tanto que essa estratégia foi largamente utilizada por pintores que o sucederam, como Botticelli, Da Vinci e Sanzio. Além de serem portadoras de mensagens, nem sempre aceitas pelo dogma católico, se pensarmos na teoria crítica da Arte proposta por homens como Aby Warburg e Ernst Gombrich, nos depararemos com reflexões a respeito dos vínculos entre forma e função na arte.

3. O efeito estético de uma obra de arte é dado pela técnica do artista, empregada de acordo com a escola à qual ele pertence e também com suas intenções. A busca por originalidade, embora não se relacione a princípio com questões estéticas do ponto de vista morfológico, pode se aproximar do tema à medida em que um artista procura dar seu toque pessoal à obra. Falsários são figuras comuns ao longo da história e seria interessante perguntar se algum deles, antes da descoberta de Frugoni, por acaso percebeu o demônio no afresco de Giotto. Quem possuir, por exemplo, um souvenir não muito recente de Assis, especialmente uma reprodução impressa da Vigésima Cena..., poderá tentar observar se o pormenor consta da cópia. É muitíssimo provável que não.
Para retomar Warburg, Gombrich e Ginzburg, o que define a marca de um mestre da arte não são seus caracteres gerais, seus padrões, mas o detalhe, o pormenor que, estando oculto, uma vez descoberto, traz revelações e indagações. Constatar uma falsificação, na melhor tradição que remonta a Lorenzo Valla e passa por Conan Doyle, se dá no nível dos detalhes. Para o artista, é uma forma de originalidade e de auto proteção contra os falsários, para um médico, um caminho profícuo na tentativa de curar doenças, ao invés de apenas eliminar sintomas, para um investigador, a chave que pode desvendar um crime, para os historiadores, uma maneira das mais sugestivas no objetivo de teorizar os exemplos que a história fornece e propor caminhos de compreensão acerca do passado e do presente. Esse é o paradigma indiciário, no qual nada é dado a priori, sendo necessário criar um trabalho de composição e imaginação criativa por parte do historiador. É como montar um quebra cabeça em que as peças parecem não manter conexão entre si.

4. As explicações para a presença do detalhe demoníaco no afresco de Giotto são várias: é possível que a criatura - ou sua figuração - represente um desafio post mortem para Francisco, ou seja, afastar o demônio seria abrir o caminho dos céus, não apenas a ele mesmo, mas também a seus discípulos e devotos que passaram a orar em seu nome. Essa ideia se coaduna com a disposição geral dos elementos no afresco, mas a representação pode prestar referência a algo além da criatura em si, estabelecendo uma relação com os chamados Estigmas de São Francisco: o homem simples que amou seus irmãos para além dos pecados e defeitos dos seres humanos, mas cuja fé e retidão são capazes de aplacar o Mal. São interpretações iniciais que ainda carecem de rigor científico e que futuramente poderão, através de pesquisas, trazer contribuições importantes.
Resta ainda, entretanto, uma discussão que invade o terreno da Antropologia e da Psicologia: coloquei acima como pergunta o fato da figura demoníaca ter sido representada nas nuvens. De início, parece uma banalidade, já que o demônio poderia estar em qualquer ponto do afresco sem que isso implicasse em mudanças no que foi fruto de reflexão até aqui. É banal só aparentemente..., não nos esqueçamos do pormenor que revela e, mais do que isso, levanta indagações...

5. Quem, quando criança, ou mesmo depois, jamais olhou para as nuvens no céu e tentou lhes atribuir alguma forma reconhecida? Certamente, todos já o fizeram e como se trata de um exercício simples e inocente, totalmente espontâneo, pode-se supor que transcenda tempo e espaço. Além disso, sabendo-se que observar o céu é uma prática remota, comum em sociedades chamadas tradicionais, a tese se reforça e assume um caráter bastante abrangente, vinculado a formas de religiosidade, xamãs e funcionamento da mente.
Ao longo da história, encontramos representações as mais diversas nas quais não apenas as nuvens em si marcam presença, como aparecem associadas a alguma forma (figuras seguintes).

Vincent Van Gogh - Noite Estrelada (1889). Nuvens em espiral. A mente do pintor holandês sempre esteve envolta em mistérios. Hoje, suscita estudos na Física e na Matemática, além da Psicologia.


Capa do álbum Brave New World - Iron Maiden (2000). Eddie toma forma a partir das nuvens na ilustração de Steve Stone e Derek Riggs.

Podemos pensar em duas ideias: a primeira delas é que, por serem efemérides em termos de duração e impermanentes em sua própria forma, além de, evidentemente, remeterem ao elemento celestial, o ser humano, inconscientemente, busca reconhecê-las por meio de um filtro capaz de conferir às nuvens alguma similaridade com o terreno, com o material, com o concreto. Dá-se a esse mecanismo mental, já estudado por cientistas como Carl Sagan (que não é exclusivo da associação de coisas reconhecíveis com nuvens), o nome de pareidolia. Apesar de explicar a motivação, ele não esgota a questão que apenas estou pretendendo abrir.
Desse entendimento, deriva o segundo, qual seja aquele que nos faz supor essa quase necessidade de transformar, na esfera do imaginário, massas amorfas de vapor d'água em coisas reconhecíveis, como um arquétipo.
Nessa aparente reviravolta, reencontramos Giotto em outro sentido além do contextual e do artístico e invadimos a esfera das ciências da mente. De um jeito ou de outro, não abandonamos a busca do pormenor revelador. Os segredos estão nos indícios.